O ideal de Justiça na literatura de língua portuguesa em África, Brasil e Portugal
Rafael Sarto Muller
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O ideal de Justiça é um constructo louvado e perseguido intertemporalmente. A sua recorrência nos mais diversos tipos discursivos ─ textos de circulação comum, filosófica, política, jurídica, científica, literária, teológica, etc. ─ torna-o objeto promissor para acalorados debates. No presente artigo, investigamos a estrutura e funcionamento do conceito de Justiça em alguns textos da literatura de língua portuguesa em África, Brasil e Portugal, confrontando-os com a abordagem de filósofos e pensadores selecionados (Platão, Tolstoi, Carpenter, Feyerabend, Kierkegaard, Nursi, Gülen, al-Ghazālī, etc.). O corpus literário de estudo compõe-se dos textos: As Velhas são o diabo, de João de Araújo Correia (Portugal); Um Cinturão, de Graciliano Ramos (Brasil); e Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?, de Mia Couto (Moçambique).
O ideal de Justiça - mais por ideal que por justo - é um constructo louvado e perseguido intertemporalmente. A sua recorrência nos mais diversos tipos discursivos - textos de circulação comum, filosófica, política, jurídica, científica, literária, teológica, etc. - torna-o objeto promissor para acalorados debates, em geral de caráter prático, ou seja, se determinada ação fora justa ou não. Essa presença dá-lhe um caráter eterno, antiquíssimo, natural e necessário, incorrendo-nos na impressão de que se trata de algo uno, permanente, e, portanto, mais facilmente acessível à cognoscibilidade humana, em especial através da sensibilidade e da intuição.
Apesar dessa impressão comum, há motivos suficientes para crer, desde Platão, que o ideal de Justiça em si é algo mais complexo e algo mais intangível do que nos fazem crer: um objeto em profunda disputa. A presença de modos desvirtuados da concepção de Justiça no ideário comum serve, numa perspectiva crítica, de entrave à realização de ideais mais elevados de convivência humana.
Investigar a estrutura e funcionamento do conceito do ideal de Justiça em diversos campos do saber, confrontando-os com literatura de língua portuguesa em África, Brasil e Portugal.
Nosso corpus literário de estudo compõe-se dos textos: As Velhas são o diabo, de João de Araújo Correia (Portugal); Um Cinturão, de Graciliano Ramos (Brasil); e Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?, de Mia Couto (Moçambique). Confrontamo-los, quanto à concepção de Justiça, com filósofos e pensadores selecionados (Platão, Tolstoi, Carpenter, Feyerabend, Kierkegaard, Nursi, Gülen, al-Ghazālī, etc.).
Graciliano Ramos começa Um Cinturão com os seguintes dizeres: "As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão" (Ramos, 2013, [s.p.]). Trata-se de um texto que transita entre os gêneros conto e relato pessoal, narrando a vez em que o narrador-personagem, quando criança de "quatro ou cinco anos, por aí" fora agredido pelo pai em virtude de um cinturão. Sinteticamente, o enredo resume-se à cena em que o pai acorda um dia e não encontra o cinturão que dá título à peça artística. Vendo no ambiente apenas o menino narrador-personagem, aduz-lhe culpado pela falta e o agride.
Com grande profundidade psicológica, registros detalhados dos comportamentos públicos e privados do narrador-personagem, o conto narra o terror da criança perante um exemplo de exercício da Justiça. Nessa amálgama, Justiça, autoridade e violência estão profundamente correlacionadas, com severos danos direcionados à parte mais fraca da relação interpessoal. Essa relação umbilical, que sob determinadas lentes pode ser observada como uma profunda ironia em relação à concepção de Justiça, em verdade revela um embate frontal histórico a respeito do nosso constructo em análise.
Esse embate pode ser lastreado n’A República de Platão, no diálogo travado entre Sócrates e Trasímaco. Este último, representante paródico da linguagem dos sádicos, é correligionário da ideia de que, dentre outras coisas, "o homem justo deve fazer mal aos inimigos e bem aos amigos" (Platão, 2012, [s.p.]) e “[a justiça é] um bem alheio, que na realidade consiste na vantagem do mais forte e de quem governa, e de que é próprio de quem obedece e serve ter prejuízo" (Platão, 2012, [s.p.]).
Da ótica estrutural, essa proposta de Justiça baseia-se, antes, na separação dos homens em amigos e inimigos e no reconhecimento de uma hierarquia clara entre eles (interesse versus desvantagem; governo versus obediência e servidão). A relação entre esses homens, uma vez hierárquica, necessariamente produzem dor e funda impressão em uns e maximizam a vantagem e o lucro de outros. É nesse ínterim que é permitido a Trasímaco dizer que "a mais completa injustiça [é aquela] que dá o máximo de felicidade ao homem injusto, e o maior dos desgostos aos que foram vítimas de injustiças" (Platão, 2012, [s.p.]).
Interessante notar que a infelicidade suprema é encontrada, na proposta de construção do discurso sádico platônico, naqueles que, além de sofrerem a (in)Justiça, não a querem cometer. Em Um Cinturão, em movimento quase instintivo para aliviar a sua infelicidade, o narrador-personagem chega a desejar que outro indivíduo mais fraco se apresentasse na cena para que se dividisse a punição sofrida pelo pai ou que assim ele fosse poupado, desejando, portanto, a continuação do cometimento da injustiça:
Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. (Ramos, 2013, [s.p.]).
Quanto ao efeito literário, tanto Graciliano Ramos, dando voz a um sujeito traumatizado quando criança aos quatro ou cinco anos, quanto Platão, dando voz a um sádico caricato, ironizam essa concepção de Justiça. Posta em termos poéticos, tal Justiça aproxima-se do próprio absurdo, construindo-se, por antítese, a possibilidade de uma Justiça outra. N’A República, Sócrates ainda contra-argumentará proficuamente à concepção de Justiça de Trasímaco.
Se a literatura mostra-se potente e capaz desse exercício de crítica implícita à Justiça sádica, não se pode dizer o mesmo de outros meios de circulação dos textos que defendem o modelo. Em verdade, estruturas teóricas completas de outros conceitos basearam-se na Justiça sádica para legitimarem-se sub-repticiamente nas mentes das pessoas. Caso emblemático é o debate em torno das diversas vertentes éticas. Enquanto apenas a Ética Idealista permanece fiel a propostas mais humanas de convivência social, todas as outras maiores categorias (Ética Realista, Ética Consequencialista, Teoria da Guerra Justa) -hegemônicas, diga-se de passagem- baseiam-se, antes, na proposta sádica de maximizar os lucros e as vantagens dos amigos e prejudicar os inimigos. No mundo jurídico, político e científico, a Justiça sádica ganha as mais diversas nomenclaturas e repercussões, conforme a área e terminologia de gestão desejadas: positivismo jurídico, securitismo, regulação responsiva, teoria da Inteligência Justa, etc.
Enquanto a Justiça sádica automatiza a sua aplicação de modo a prescindir do desvendamento de reais responsáveis (é automaticamente responsável, culpado e punível o mais fraco da relação, qualquer inimigo daquele que governa), qualquer Justiça outra que se apresente problematizará a questão da responsabilização subjetiva como modo de colocar em debate a relação hierárquica a que estão submetidos os sujeitos do mundo.
Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?, de Mia Couto, é um texto que, dividido em quatro epístolas, narra a morte de Cartola Gentina, esposa do epistolário. Em linhas gerais, narra-se desde o surgimento da suspeita de a mulher ser uma nóii (um tipo de bruxa feiticeira que é ao mesmo tempo animal e mulher), até sua morte e a condenação do marido.
Tendo-se em mente que as cartas são um dos modos, via de regra, mais intimistas e subjetivos dos gênero literários - ou isso pressupõe-se pelas características do gênero, até segundo juízo -, torna-se ambiente profícuo para a narrativa reflexiva e subjetivíssima em primeira pessoa capaz de fazer verter toda sorte de pensamento do narrador, tanto aqueles diretamente relacionados aos fatos, mas também seus juízos de valor e opções filosóficas diante da vida.
O trauma é antecipado na primeira epístola, já ao primeiro parágrafo, quando inicia:
Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? [...] quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências. (Couto, 2006, p.1).
A opção pela mistura das primeiras pessoas do singular e do plural já antecipa um estranhamento e uma cosmovisão que serão reafirmadas ao final do conto. A ideia de coexistência entre os seres que, no plano ocidental, estão separados arbitrariamente pelos limites físicos dos corpos, ganha cena. A existência da vida é uma só e, com isso, a morte atinge a não apenas um sujeito, mas sempre a todos.
Nas segunda e terceira epístolas, são narrados principalmente os fatos que levaram à escritura da epístola, direcionada ao "senhor das leis", provavelmente o juiz responsável pelo julgamento do autor pela morte da mulher. Nestas, o narrador confessa ser responsável pela morte da mulher, mas questiona o status de crime à sua atitude, uma vez que não pode saber se entornara água na mulher ou no pássaro, uma vez que seria ela uma nóii:
O senhor me pediu para confessar verdades. Está certo, matei-lhe. Foi crime? Talvez, se dizem. Mas eu adoeço nessa suspeita. Sou um vivo, não desses que enterra as lembranças. Esses têm socorro do esquecimento. A morte não afasta-me essa Carlota. Agora, já sei: os mortos nascem todos no mesmo dia. Só os vivos têm datas separadas. Carlota voou? Daquela vez que lhe entornei água foi na mulher ou no pássaro? Quem pode saber? O senhor pode? (Couto, 2006, p.3)
A água surge, ao mesmo tempo, como símbolo da vida e da morte, de modo que os conceitos são entrelaçados em um modo de configuração pouco comum à cosmovisão ocidental, que tende a vê-las como polos opostos de um mesmo fenômeno - a existência. E é exatamente neste ponto que acerta o autor: qual a existência que fora extinta? A da mulher, o que conjecturaria o crime, ou o voar do pássaro e sua libertação, situação para a qual não haveria sequer mulher e nem crime?
A dúvida sistemática, tal qual postulada - "Quem pode saber? O senhor pode?" (Couto, 2006, p.3), é instrumento de revelação das verdades principiológicas tomadas a priori. No caso do conto, isso é revelado na última epístola, quando o narrador pede por um julgamento justo, de um juiz natural, o qual tenha convicções principiológicas tais que deem conta de sua cosmovisão:
Sou filho do meu mundo. Quero ser julgado por outras leis, devidas da minha tradição. O meu erro não foi matar Carlota. Foi entregar a minha vida a este seu mundo que não encosta com o meu. Lá, no meu lugar, me conhecem. Lá podem decidir das minhas bondades. Aqui, ninguém. Como posso ser defendido se não arranjo entendimento dos outros? Desculpa, senhor doutor: justiça só pode ser feita onde eu pertenço. (Couto, 2006, p.4)
Se a Justiça só pode ser feita onde se pertence e a ideia de pertencimento decorre de arranjar-se o entendimento dos outros, a Justiça é, aqui, postulada por si como um constructo ao mesmo tempo discursivo e social. A tão prezada objetividade é posta em xeque no sistema de pensamento proposto, juntamente com o pensamento individualista.
Quando a Justiça sádica reclama (e ganha) status de objeto científico, pelo efervescimento das ciências sociais e jurídicas positivistas, o movimento de crítica à Justiça sádica insere-se dentro do movimento ele-mesmo de crítica epistemológica às ciências tal qual feitas até então. Seja com as propostas de Teoria Crítica de Adorno e Horkheimer, seja com as revoluções científicas e complexidade de Thomas Kuhn e Edgar Morin, seja com a propositura de uma epistemologia anarquista que combata a ciência moderna como em Edward Carpenter, Liev Tolstói e Paul Feyerabend, várias vertentes filosóficas passam a reclamar um outro ideal do fazer ciência, que seja mais engajado humanitariamente e reconheça a subjetividade do saber.
Esse outro mundo ("meu", no texto de Mia) que não se encosta no mundo julgador do senhor das leis ("seu", no texto de Mia) é o mundo da tradição enquanto proposta de crítica ao individualismo. Indivíduo e sociedade estão em uma relação profundamente dialética de crítica mútua, de modo que, para se analisar uma sociedade individualista como a ocidental (nosso caso), é apenas a partir da comparação baseada em premissas outras que isso será possível (Leirner, 2003).
A confrontação entre si (indivíduo) e o Todo moral (sociedade), no campo literário, fora objeto de estudo de Hegel em Estética: o belo artístico ou o ideal. Lá, ele aponta:
Não estabelece o indivíduo heróico qualquer separação entre si e o Todo moral de que faz parte, mas antes se considera como formando uma unidade substancial com o Todo. De acordo com as idéias atuais, nós, pelo contrário, separamos as nossas pessoas, nossos interesses e fins pessoais, dos fins visados pelo Todo; o que o indivíduo pratica, pratica-o só enquanto pessoa, só se julga responsável pelos seus próprios atos e não pelos do Todo substancial em que participa. (Hegel, 1974, p.239)
Se a Justiça sádica baseia-se na responsabilidade individual (do mais fraco) para submeter as pessoas e auferir vantagens e lucros aos governantes, a possibilidade de crítica a esse ideal de Justiça dá-se através do recorrimento a epistemologias que não estabeleçam tal diferenciação de indivíduos de modo estanque. Hegel, como visto, sugere um retorno à idade heroica como referencial.
A ideia de herói aqui ganha posição de centralidade. Na Poética de Aristóteles, ele configura-se como pessoas tais
que não se distinguem nem pela sua virtude nem pela justiça; tão-pouco caem no infortúnio devido à sua maldade ou perversidade, mas em consequência de um qualquer erro, integrando-se no número daqueles que gozam de grande fama e prosperidade, como Édipo e Tiestes, ou outros homens ilustres oriundos de famílias com esse mesmo estatuto. (Aristóteles, 2008, p.61).
Logo, necessariamente o herói é ilustre de famílias com importante estatuto. Ainda que expressamente não distinto pela Justiça, esta só entra em cena de modo problematizado concomitantemente ao herói. Afinal, é forçoso ao enredo a passagem da prosperidade para a desgraça por efeito de um erro grave. Se por efeito da perversidade (Justiça sádica), a tragédia perderia o seu potencial de produção de efeito poético.
Em Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?, diferentemente, dá-se voz a um sujeito comum, ao qual não se poderia conferir o atributo de herói trágico aristotélico. Em oposição, entretanto, trata-se de um herói hegeliano, uma vez que ficam abolidas as separações "entre si e o Todo moral de que faz parte". A confrontação dessas perspectivas abre caminho para a crítica mesma à própria concepção de herói, crítica esta própria da linguística: todo e qualquer processo de significação é, em si, arbitrário. A ideia de herói associado à fortuna e prosperidade decorre do poder simbólico construído em torno da persona de Aristóteles, não havendo nada no significante herói que remeta à fortuna e prosperidade (nem à virtude ou à justiça).
Isso posto, resulta o questionamento: quem é o Justo (capaz de aplicação da Justiça) e quem é o culpado (objeto da aplicação da injustiça)? No mundo literário, Dostoiévski dirá:
não pode haver juiz de um criminoso sem que antes esse mesmo juiz saiba que também é tão criminoso como aquele que está à sua frente e, mais do que ninguém, talvez seja o culpado pelo crime que tem diante de si. (Dostoiévski, 2012, [s.p.])
O ideal de Justiça sádico, contrariamente, postulara que apenas os fortes eram capazes de aplicação da Justiça, posto que a Justiça seria o poder de prover vantagens aos amigos e prejudicar os inimigos. A segunda parte dessa assertiva fora, ao longo do tempo, implicitada (mantida nas práticas ocultas), mas perdurara explicitamente a primeira parte. Desse modo, descredibilizar um "senhor das leis" à aplicação da lei, por julgá-lo desconhecedor do entendimento da tradição, tal qual faz o (herói?) narrador no texto de Mia Couto, é um passo à conformação de um ideal de Justiça outro, diferente daquele sádico visto em Graciliano Ramos.
Tolstói dirá que a religião "determina o que é muito importante, o que é menos importante e o que não é importante em absoluto para as pessoas, o sentido e objetivo da vida" (Tolstói, 2012, [s.p.]), enquanto a ciência "sempre estudou e estuda da forma mais detalhada o que os estudiosos consideram o mais importante, e estudam menos detalhadamente o que consideram menos importante, e não estuda em absoluto todo o resto de uma quantidade interminável de objetos" (Tolstói, 2012, [s.p.]). Esses estudiosos-cientistas, "sem nenhuma religião e por isso sem base para escolher — pelo grau de importância — os objetos de estudo e separá-los dos menos importantes" (Tolstói, 2012, [s.p.]), acabam por alimentar um modelo de ciência pela ciência, que reproduz as relações de poder que já estão estabelecidas, aprofundando a distância de valor entre os homens, agora numa proporção de conteúdo de saber científico (divisão entre os sabedores da ciência e "ignorantes").
Ao proferir um discurso de poder (e encontrar subsídio entre os governantes para mantê-lo, posto que é ferramenta de dominação), a ciência apenas ilude seus ouvintes, na vã expectativa de que a explicação dos fenômenos de ordem inferior resolvam os problemas de ordem superior. Acompanhando os dizeres de Edward Carpenter, professa que
a ética se reduz à questão da utilidade e dos costumes herdados. Da economia política se extraem todos os conceitos sobre a justiça entre as pessoas: a compaixão, a afeição, a inclinação para a solidariedade, e ela [a economia] está fundamentada no mais baixo princípio que é possível encontrar nela, a saber: o princípio do interesse pessoal. (Tolstói, 2012, [s.p.])
Reduzindo a ética à utilidade e a economia política ao interesse pessoal, a ciência mostra-se comprometida com o ideal de Justiça sádica já aqui debatido. Como a crítica a uma epistemologia só é possível a partir de um sistema complementar-opositor, nunca possível a partir das premissas do próprio sistema de pensamento, será então nas abordagens teológico-filosóficas que poderemos encontrar a estrutura da Justiça sobre a qual se fundamenta a ciência. Aqui, como já antecipado por Tolstói e Carpenter, encontram-se as promessas revolucionárias do anarquismo epistemológico.
Paul Feyerabend, outro expoente anarquista, no afã de fazer progredir uma ciência profundamente humanitária e comprometida com os ideais de convivência humana - uma ciência anarquista, por assim dizer - afirmará:
O primeiro passo a dar, em nossa crítica dos conceitos de uso comum e das reações habituais, será o de saltar para fora do círculo e inventar um novo sistema conceptual […], ou o de importar este sistema de fora do âmbito da ciência: da religião, da mitologia, das ideias dos não-especialistas ou das palavras desconexas dos loucos. Esse passo é, ainda uma vez, contra-indutivo. Assim, a contra-indução é, ao mesmo tempo, um fato - sem ela a ciência não poderia existir - e um lance legítimo e necessário no jogo da ciência (Feyerabend, 1977, p.90-91).
Se religião e loucura são meios alternativos de conhecer a realidade e tecer as críticas necessárias às imposições tirânicas da ciência, As velhas são o diabo, de João de Araújo Correia, traz os registros literários necessários à propositura da dita "loucura" como estratégia de luta contra a opressão.
Em linhas gerais, o conto As Velhas são o diabo narra fatos associados ao casamento de Frederico, um jovem comerciante (feirão), "rapaz doente e pobre" (Correia, 1984, p.44), com Aninhas, uma senhora de mais de cinquenta anos possuidora de uma bela casa com quintal, regalia que mais lhe interessara no matrimônio. Com o casamento, inicia-se um ciclo de prosperidade material para Frederico, que se reproduz em "bens comprados ao redor da casa - hoje uma leira, amanhã uma vinha, depois uma mata" (Correia, 1984, p.45). Apesar disso, na vida marital, Aninhas se mostra uma mulher ciumenta e Frederico adúltero, ao que os conflitos se avolumam, chegando à violência familiar deste contra ela. O conto se encerra com o fim do ciclo de prosperidade da casa e com a derradeira atitude de Aninhas de apunhalar uma identificada amante de seu marido, indo presa. Na prisão, ao receber a visita do marido, escarra-lhe na cara e é cunhada louca.
Em que pese o título do referido conto fazer remissão à questão da idade ("As Velhas..."), ganha posição de centralidade no enredo a questão matrimonial e da propriedade: das posses de bens econômicos e da posse do outro. Reluz nos meandros do conto a existência de uma questão cultural em torno do casamento: a sua obrigatoriedade, com clara separação de papeis entre homem e mulher. Para o primeiro-homem, as posses, o dote, a superação da pobreza e, por conseguinte, a realização material que dignifica o homem. No espaço cultural, digno apenas é o rico e à riqueza associa-se o matrimônio. Doutro lado, para a segunda-mulher, é resguardado o lugar de subalterna, cuja função - dar filhos ao marido e cuidar a ele e aos filhos - vê-se parcialmente frustrada em Aninhas, que já não pode ser mãe.
Quando a mulher reconhece-se frustrada em sua função precípua dada culturalmente, torna-se ciumenta, possessiva ou "louca", nos dizeres do protagonista e do narrador, deixando de lado os cuidados com a casa, bem maior de interesse do marido. A relação degringola importantemente a partir desse ponto fulcral, o qual merece maior atenção analítica.
A "loucura" da mulher é sintomática. Como toda "loucura", configura um agir fora dos padrões esperados culturalmente e que se caracteriza por uma luta contra esses mesmos padrões impostos. No caso de Aninhas, revolta-se contra a sua posição naufragada de mulher-esposa imposta socialmente, uma vez que se reconhece meramente como "sócia" de seu marido. É desconstruída ideia do "amor conjugal" que a vinculava ao relacionamento, restando imposta uma nova condição à mulher: perdida em relação à posição-função que ocupa na relação. O padrão imposto - submeter-se ao marido - é subvertido: e ela passa a tornar-se ciumenta e suspeitar do marido como forma de submetê-lo a ela.
É nesse ponto em que o narrador da história demonstra-se profundamente vinculado à cultura e à perspectiva de Frederico: se a ideia do "amor conjugal" é desconstruída em Aninhas, ela não é desconstruída culturalmente. Veja-se: o casamento dos dois (evento particular) é taxado como malsucedido em decorrência de uma falha da mulher que, por ser velha, seria o diabo. Não é posta em causa a instituição do casamento em si, como uma relação culturalmente imposta e, portanto, autoritária perante a liberdade dos indivíduos. A alternativa - o amor livre - não aparece no texto. E é a partir tanto das revelações quanto das ocultações que percebemos o vínculo que cria o narrador com o protagonista-Frederico.
Aninhas é banida de todos os contextos: da sua condição de mulher-esposa no relacionamento, da sociedade quando se vê presa, e do próprio texto literário enquanto personagem quando taxada de "diabo". Esse banimento é, certa forma, premeditado: identificada por suas posses desde o início do texto, a mulher não seria detentora de quaisquer direitos. A história, portanto, não é assaz imprevisível: a própria "loucura" é esperada, na medida em que a mulher é colocada em posição insustentável e desta posição nada mais se poderia esperar que não a "loucura".
Pelo exposto, percebe-se que o matrimônio, posto como posto (segundo a cultura inferida dos posicionamentos e juízos de valor do narrador), é uma instituição autocrática em que as liberdades individuais são tolhidas. Nesse ínterim, está fadada, portanto, ao fracasso do ponto de vista da autorrealização. A responsabilidade não deveria recair sobre a figura de qualquer dos indivíduos envolvido na relação, quanto menos da mulher [idosa]. O diabo, nessa perspectiva, é o próprio casório.
Voltando-se a Carpenter e Tolstói, vê-se que a relação conjugal de Aninhas e Frederico é a própria materialização da racionalidade científica: retiram-se "a compaixão, a afeição, a inclinação para a solidariedade" (Tolstói, 2012, [s.p.]) e deixa-se restar exclusivamente o interesse pessoal. Os elementos retirados, entretanto, compõem a dimensão espiritual da existência humana, como postulam Said Nursi e Fethullah Gülen, expoentes das filosofias islâmicas contemporâneas. Nas palavras de Farjeat:
Gülen assume que o Islã promove uma série de valores humanos que podem contribuir para o fortalecimento da cultura democrática. Ele pensa, na mesma linha de Nursi, que algumas democracias modernas negligenciaram a dimensão espiritual da existência humana. O valor inerente à dignidade moral de todos os seres humanos só é compreendido, segundo Gülen, se for assumido que felicidade, justiça, igualdade e tolerância são valores transcendentes e, nesse sentido, são compartilhados por muçulmanos e não muçulmanos (Gülen, 2004). [tradução livre](Farjeat, 2019, p.144)
Digno de nota que a Justiça é colocada como valor transcendente, juntamente com a felicidade, igualdade e tolerância. Sócrates, em Platão, novamente n’A República, corrobora a noção de Justiça transcendental, mas postula-a ao lado da moderação, da coragem e da sabedoria.
A Justiça deixa de ser um objeto esvaziado em seu aspecto espiritual e reduzido ao interesse pessoal, como trazia Trasímaco e as ciências (especialmente a economia política) modernas. Torna-se um ato de fé: "crendo que a alma é imortal; e capaz de suportar todos os males, assim, como todos os bens, nos manterá sempre na estrada ascendente e, de qualquer maneira, praticaremos a justiça e a sabedoria" (Platão, 2012, [s.p.]).
Essa linha de pensamento desemboca na mesma conclusão a que chega Feyerabend com sua análise da história da conformação do método científico: não há elemento nenhum na própria metodologia científica que garanta que ela se preste, necessariamente, ao bem social. Sua argumentação sustenta-se em Kierkegaard:
Com efeito, não é admissível que a ciência tal como a conhecemos, ou a ‘busca da verdade’, no estilo da filosofia tradicional, venha a criar um monstro? Não é admissível que prejudique o homem, transformando-o em máquina miserável, hostil, egoísta, desprovida de encanto e de humor? ‘Não é possível’, pergunta Kierkegaard, ‘que minha atividade como observador objetivo [ou crítico-racional] da natureza diminua minha fortaleza de ser humano?’ Suspeito que a resposta a todas essas indagações deva ser afirmativa e creio que se faz urgentemente necessária uma reforma das ciências que as torne mais anárquicas e mais subjetivas (no sentido de Kierkegaard) (Feyerabend, 1977, p.274)
A sabedoria enquanto valor transcendental vê-se, então, ressignificada. A sabedoria diferencia-se do racionalismo pela manutenção de seu aspecto espiritual. Há, portanto, um quê de irracionalidade que deveria ser sustentado, um quê do incognoscível reservado à exclusiva pertença de Deus.
Nessa linha crítica ao excesso de racionalismo está também al-Ghazālī:
Uma característica genuinamente curiosa do relato de al-Ghazālī sobre as virtudes é sua alegação de que há um excesso, bem como um defeito no desenvolvimento da razão. Em contraste com a corrente dominante da falsafa e da tradição racionalista grega, al-Ghazālī afirma que é possível ser muito inteligente para o seu próprio bem: para ser mais específico, um excesso de raciocínio levará a “fraude, astúcia, trapaça e artimanha”. [tradução livre] (Kukkonen, 2015, p.160)
Em outras palavras, a sabedoria preserva uma firme convicção a ser mantida corajosamente: a convicção de que o encanto e o humor (a igualdade e a tolerância) são possíveis na convivência humana, ainda que o racionalismo científico extremista não dê conta de enxergá-los para além da sua viseira do interesse pessoal.
Em sentido inverso do percorrido inicialmente nesse texto, tivemos em As Velhas são o diabo, de João de Araújo Correia (Portugal), um exemplo de registro literário em que Justiça e Verdade são valores postulados como independentes entre si. A noção de verdade (científica, objetiva) não garante a Justiça verdadeira, uma vez que a concepção de Justiça científica (sádica) está esvaziada de sua dimensão espiritual.
Essa Justiça verdadeira mostrou-se, enquanto discurso, em Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?, de Mia Couto (Moçambique), propriedade da coletividade, da tradição e da sociedade. Acompanhando Sócrates, trata-se o exercício da Justiça de um atributo não só do indivíduo, mas de toda a cidade.
O extremo oposto - a Justiça sádica, científica, individualista - fora nosso ponto de partida em Um Cinturão, de Graciliano Ramos (Brasil). No curtíssimo enredo do texto, todo o terror e o potencial da injustiça e perversidade humana, travestidos de Justiça, ficam escancarados sob o efeito poético criado pelo escritor.
Em diálogo com os diversos outros literatos, filósofos, epistemólogos e religiosos trazidos para o debate, constatou-se que a Justiça é um conceito em disputa, tensionado entre dois extremos desde o texto fundador de Platão: A República. Em um extremo, uma vertente sádica, individualista, científica, objetiva, autocrática, hegemônica, desvirtuada, que se reinventa e se reproduz até os dias atuais. Noutro extremo, uma vertente humanitária, coletivista, espiritualizada, subjetiva, tolerante, contra-hegemônica e original, que ainda se esforça para convencer a humanidade de que se trata de uma verdade possível. É na defesa desta última que reproduzimos aqui, a título de encerramento, as palavras d’A República:
Se, portanto, todos falassem assim desde o começo, e nos persuadissem desde novos, não andaríamos a guardar-nos uns aos outros para não praticarmos injustiças, mas cada um seria o melhor guardião de si mesmo, com receio de coabitar com o maior dos males, se praticássemos a injustiça. (Platão, 2012, [s.p.]).
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