Carta de Rafael Sarto Muller a seu amigo João Tonhá

Salve.

Voltando ao meu subsolo após a sua defesa de dissertação, via-me perdido e agitado dos mesmos devaneios que me agitaram durante a leitura, em primeiríssima mão – e disso sinto-me honrado –, de sua dissertação e, mais depois, durante a escuta das arguições feitas pelos professores em sua banca. Já o disse antes da minha satisfação em identificar o que resgato da tradição como enfant terrible em sua persona escritora. Isso, entretanto, seria pouco de minha parte que tanto valorizo aqueles que compartilham dessa filosofia prática de vida: é-lhes comum, como lhe ocorrera, que a filosofia ganhe um aspecto postural, até egoístico – nosso pensar serve servilmente ao que nos interessa e nada mais. Se pensamos, falamos e escrevemos, o é, tão exclusivamente, para nós mesmos. E se publicamos, o fazemos pelos motivos mais absurdos o possível: o meu, por raiva. Ainda não teria a audácia de dizer do seu.

Já o vês que se não te mando um singelo e-mail, mas, em vez disso, crio essa ladainha que se inicia inspirada no Elogio da Loucura de Erasmo de Rotterdam, isso não será à toa. Primeiro, para chegar aos seus pés de enfant terrible, também para exercitar minha escritura literário-filosófica. Segundo, pois creio que é o que sua dissertação merece quando penso em considerações, visto que tais considerações têm que ter o mesmo tom para que se conversem numa prosa agradável como o são sempre as nossas: minhas considerações precisariam ser graciosas, milimetricamente planeadas, entregues com design, o quê, no estéril campo da literatura papel-e-caneta, corresponde à arte dos truques de estilo, jogos de palavras e musicalidade.

Naturalmente, portanto, também não falo apenas da forma com que essas considerações serão tecidas, senão já lhe entrego o primeiro conteúdo: a sugestão de leitura dos textos não acabados de Paul Feyerabend, compilados na obra póstuma A conquista da abundância. Começo por ele: encontrarás um autor o qual – enfant terrible – não estará muito preocupado com a verdade e, ao mesmo tempo, será o seu maior defensor. Isso não o fará especial: Sexto Empírico, Pirro de Élis, Diógenes de Sinope, Górgias, Al-Ghazali, Abai Kunanbaev, Gregory Bateson, Espinoza, Tschirnhaus, Emmanuel Levinas, Étienne de la Boétie, B. F. Skinner, Edward Carpenter, Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski, Albert Camus, Jean Genet, Friederich Nietzsche, Pierre Joseph Proudhon, Piotr Kropotkin, Célestin Freinet, Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson, Paul Watzlawick, Ludwig Wittgenstein, Leibniz, Hayden White, Raymond Williamns, Luiz Costa Lima, são só alguns nomes os quais compilei até o momento que o fazem semelhante. Especial dele (e de alguns dessa lista como Genet, Tolstói, Freinet, Espinoza, Tschirnhaus e Dostoiévski) será a defesa da verdade feita às avessas – defendendo que a verdade não só não existe [um argumento fácil e frágil], mas, principalmente, não serve para nada [média dificuldade], quando não – pior – ainda nos prejudica em nosso percurso de conhecimento e em nossa teleologia no mundo.

Eis a tese que defenderei perante o seu texto Notas sobre o Digital: uma sistematização da ontologia digital: ontologias, taxonomias e sistematizações não servem para nada em nosso conhecimento das coisas do mundo, em nosso percurso à perfeição do intelecto humano, à ciência pura e à filosofia – vulgos “problemas de pensamento”. Entretanto, o valor dessas ontologias, taxonomias e sistematizações tende a ser grandioso para a práxis, para a lida diária com problemas obscuros que se interpõem à ciência aplicada – vulgos “problemas de ação”. Essa discriminação dos problemas [em de pensamento e de ação], feita por Dyonelio Machado, baseia-se em um conceito matemático: o infinito. Tomando-se consciência do poder desse infinito, ganhamos o potencial de conhecer tudo, o universo todo e os seus correlatos, passear por qualquer lugar onde haja existência de qualquer Ser, pois poderemos pensar o que quer que seja e “pensar é, para o ser humano, o passeio da alma”.

Pareço afetado, mas essa afetação me é meramente interesseira. Preciso que as ideias racionais que proporei, sistematicamente, façam-lhe sentido, gerem a sensação, o sentimento de consolo, que é a redução da comoção do ânimo, o esfriamento das sensações e o aquecimento do intelecto. Uma metáfora física: o calor só existe enquanto uma transferência; a sua percepção empírica por nossas terminações nervosas dá-se pelo ganho de energia térmica perante uma fonte mais quente. A noção, pois, de que sentimentos sejam quentes e a razão, fria, é uma convenção metafórica. As convenções são tão mais fortes quanto mais tragam deleites – dinheiro, fama e lascívia – aos homens no geral. Argumentar que a tristeza é um sentimento frio (uma contradição se considerada a convenção de todo sentimento ser quente) é mais fácil do que argumentar que a paixão efervescente dos recém-amantes seja um sentimento frio. Mais fácil porque, apenas de anunciá-lo comparativamente, nosso ouvinte já se predispõe a fazê-lo, enquanto se predispõe a negar a frieza da paixão. Mas, ora: se o desejo lascivo nos agita, torna-os obsessivos buscando ao ente amado a todo instante, o prazer lascivo, o encontro, corresponderá à aquietação do ânimo e, portanto, um esfriamento. As outras mazelas, outrora aflitivas, ao que ama apaixonadamente estão aquietadas, esfriadas. Não queimam.

Pelo critério da ação de pensar – veja-se que uno ‘pensamento’ e ‘ação’ propositalmente –, não temos mais sorte: o entristecido, menos propenso ao movimento, ocupa seu tempo por pensar; enquanto o apaixonado, mais propenso ao movimento, ocupa seu tempo em agir; entretanto, sem agir, ao entristecido faltam novos estímulos e seu pensar torna-se repetitivo, um apenas pensar, e pensa assim ter já pensado tudo, enquanto o apaixonado, estimulado por todos os lados enquanto movimenta-se, pensa tudo o quanto pode, ainda que sinta pensar pouco perante todo o seu potencial pensante. Sob o critério da diversidade de pensamento, a tristeza degringola o intelecto e o sujeito, menos pensante, torna-se menos frio segundo a convenção; enquanto o apaixonado, estimulado às novas experiências (donde, novas ideias), torna mais limpo e hábil a seu intelecto, tornando-se mais frio segundo a convenção.

Com isso pretendo demonstrar que as convenções são, na melhor das hipóteses, probabilísticas. O infinito escapa à probabilidade, precisa ser um para-além do limite da capacidade do pensar humano (donde, para suplantar nossa incapacidade de pensar o infinito, usamos esse rótulo “infinito” como uma bandeira branca, um passo que não cabe aos homens, mas tão somente a Deus, esse que é outro rótulo para o mesmo infinito, ou incognoscível nos termos do Alcorão). Assim, as convenções são finitas e, o sendo, são ferramentas que organizam a nossa comunicação vulgar, diária. Adotar a postura de contrapor a quentura da paixão e a frieza do raciocínio, na maior parte dos contextos vulgares em que circulamos diariamente, é – espero – desnecessário. A energia para construir toda uma nova linguagem própria é imensa e ineficaz: seríamos nós mesmos os únicos letrados em nossas línguas tonhesca e sartiana e, nós mesmos, não nos entenderíamos em outros contextos que não o acadêmico. Roman Jakobson que o diz: se levado às últimas consequências, todo Código (elemento de sua Teoria da Comunicação) será personalíssimo e haverá tantos Códigos quanto interlocutores no planeta. Falamos todos línguas diferentes, mas dialetamos para nos comunicarmos mais ou menos bem. Quando não nos entendemos, tentamos outras línguas ou tentamos refinar nosso poliglotismo compreendendo que determinadas palavras e sentenças, para o outro, podem significar algo diferente, exigindo traduções. Com circunlóquios, palavrórios e ladainhas, reduzimos a frequência de ocorrência de ruídos e mal entendimentos. Depende, antes, de isso ser um desejo em comum: que ambos os interlocutores estejam permeáveis à comunicação.

Eis que nossa teleologia – o motivo original e, ao mesmo tempo, o nosso fim – será a convivência humana, o bom-viver e, ela, antecede qualquer ação nossa (Levinas que o dirá da ética antecedendo o conhecimento). Sendo essa convivência o nosso fim e sendo as convenções da linguagem o nosso instrumento, nada há de errado em usá-las. Compilando a essas ideias, Espinoza o sugerirá em seu Tractatus de intellectus emendatione que, para reconduzir o intelecto humano à via correta, somos forçados a assumir como boas regras do viver: a) falar vulgarmente; b) fruir dos deleites, protegendo a saúde; c) imitar apenas os costumes que não se oponham à nossa teleologia.

Dito isso, devo voltar à sua dissertação: ela não deu certo e, justamente assim, deu perfeitamente certo. Acompanho os arguidores nesse aspecto. Entretanto, por julgar que deu perfeitamente certo, não os acompanho nas sugestões de alterações de suas terminologias.

Comecemos pela ontologia. Que nenhuma definição é boa o bastante e que todo conceito é por demais efusivo, complexo, disputado, isso é uma característica própria do gênero conceito que nossos pesquisadores contemporâneos optaram por esquecer e mostram-se perplexos perante essa descoberta e acreditam isso tratar-se de uma boa conclusão de pesquisa. A perplexidade é justa: sociólogos, historiadores, politólogos vão estudar algo como o Capitalismo e acabam por esbarrar noutro objeto de pesquisa – o conceito de conceito – donde o espanto: não estão letrados nas filosofias e acabaram de serem confrontados com um mundo novo e proibido às ciências desde que a filosofia e a ciência foram desconjuntadas terminantemente. Ocorre que a filosofia é, justamente, a ciência humana pura. Da mesma forma que a matemática, enquanto notação científica, serve às ciências exatas aplicadas (e a todas as ciências que quiserem – e sempre devem – se valer de seus conceitos), a filosofia da linguagem serve de notação científica às ciências humanas aplicadas (e a todas as ciências que quiserem – e sempre devem – se valer de seus conceitos). Sob alguns aspectos, elas nem se diferenciam: ao adotar, num sistema de equações, duas incógnitas com grafismos diferentes (x e y, por exemplo), é para evitar a confusão na definição daquelas variáveis. Também é por bem que o façamos nas humanas, segregando, por exemplo, ontologia e metafísica. Entretanto, se mais à frente nas contas descobrimos que a x e y correspondem o mesmo valor, podemos passar a usar apenas x para ambos, de modo a simplificar nossa notação (vulgarizar o que dizemos). Assim também com determinados recortes de pesquisa em humanas. Se estudarmos a fundo a história do pensamento filosófico, ontologia e metafísica vão discriminar-se, por exemplo, a partir de seus pensadores-pai e, na cadeia de influências de pensamento, para epistemologias diversas (ciências jurídicas, física etc.). Com o tempo, outros aspectos, reforçados ao longo do tempo, solidificam-se sobre um e outro termo – mais pela força bruta do que pela argumentação lapidada, muitas vezes – a metafísica, hoje, guarda seu importante valor histórico e referencial, mas estritamente pode ser chamada uma pseudociência a partir dos achados da física moderna. Ela, entretanto, talvez nunca tenha se proposto a isso: a metafísica diria da organização das ideias gerais a respeito dos fenômenos físicos, sendo eminentemente filosófica. É, pois, uma reflexão que invade a dicotomia entre problemas de pensamento (abstrato, ideia) e de ação (material, concreto, corpóreo) quando estuda os limites [do espaço] da física. Se a física estuda tudo aquilo que tem extensão no espaço – essa metáfora que lhe é tão cara –, a metafísica identifica esse limite e separa o abstrato do concreto. Estudando limites, estudam-se tanto a própria física (de um lado do limite, daí o termo metafísica) quanto o que não é físico (os conceitos, a existência imaterial, a ontologia do ser).

Daí que gosto mais de ontologia, pois sua dissertação investiga e mapeia (sistematiza, para escapar à metáfora do espaço contida no mapa, na cartografia) conceitos segundo seus atributos. O significado é mais direto (menos afetado, menos floreado) e os significados históricos se avolumam nele: a investigação das essências das coisas, ou seja, os aspectos que fazem com que chamemos algo pelo seu nome convencional, é algo propriamente ontológico. Leibniz há de te ajudar: fora um físico que se debruçara longamente sobre a filosofia da linguagem – algo que para muitos é uma estranheza e, para nós, mais do que necessário – e, racionalista, demonstrou que tudo que há no mundo (e é comunicável, naturalmente) poderá ser destrinchado em adjetivos e verbos. Veja: não há substantivos. As coisas – coisa, esse termo tão vulgar e genérico – é, em si, um gênero, uma classe, uma agregação de atributos (adjetivos). Dou nome (substantivo) a triângulo se me deparo com três linhas conectadas em extremidades. Às linhas (substantivo), o trecho demarcado entre dois pontos (que já não conta com espaço e área). No limite do raciocínio, será preciso visualizar, imaginativamente, com o auxílio do intelecto, uma diferença de coloração luz-sombra por sobre esse trecho que liga dois pontos (que também são identificados, metaforicamente, com uma região escurecida da menor área visível possível num plano claro). Em última instância, mesmo as coisas mais banais são convertidas em atributos (adjetivos), como claro/escuro. Entretanto, se a noção de luz ou visão não fazem, ontologicamente, parte do conceito de triângulo, a metáfora nos é inescapável. Antonio Candido também defenderá essa ideia de que, na linguagem, tudo é metáfora. Por extensão, a nossa diferenciação – vulgar – entre um sentido conotativo/metafórico ou denotativo/literal será arbitrário, segundo as convenções.

Como todo estudo ontológico busca as essências primeiras (ou últimas), será sempre um estudo limítrofe e os limites, por definição (faz parte de seu conceito, de sua ontologia), são arbitrários – cada investigador o escolhe a seu bel prazer – logo, o essencial não existe em si mesmo, independentemente de quem olha. Eu sei que você chegara na mesma conclusão e eu não lhe agrego nada com isso – sempre o soube desde quando comecei a escrevê-lo –, mas por minha sorte já defendi a importância do circunlóquio, do palavrório, da ladainho e de que as ideias que se fazem convenções o são pela repetição e pela força bruta, como dirá o nosso Feyerabend que te indico.

Compreendendo que a ontologia, então, não é própria do objeto de pesquisa, mas forjada assim no início do estudo para que se opere um método radicalmente analítico (destrinchatório – para inventar uma palavra que me soa bem) dos limites entre o que é material (empírico) e o que é imaterial (ideias), parece-me que coincide muito bem o termo com o que fizeste. De igual creio que cabem muito melhor sistematização e taxonomia, suas escolhas originais, do que ecologia, como lhe propuseram. Isso porque, compreendendo à filosofia da linguagem, saberemos que sistematizações e taxonomias são meras ferramentas para organizar conceitos convencionados, agilizar a comunicação vulgar em ambiente produtivo, em que as pessoas precisam de soluções para seus problemas de ação. O erro, que gera o automatismo das soluções (que acabam por não solucionar nada e, às vezes, gerar mais problemas), está no operador dessas sistematizações e taxonomias. Acreditando-as o universo, a resposta final e completa para todos os problemas, amplamente aplicável a todas as situações, a ferramenta falha. Para usar um jargão digital: problema de BIOS – bicho ignorante operando o sistema. Jogamos, então, a ferramenta fora para proteger a um sujeito ignorante pela convenção social de que o afeto quente e irracional é absolutamente mais importante do que a frieza do intelecto. Damos energia [térmica] à burrice, ignorando que, dois passos à frente, a proteção ao ignorante e o desprezo à boa ferramenta prejudicará, sem qualquer amabilidade, a uma carreira de outras pessoas. É um vício: estamos afeiçoados ao nosso próximo, empírico, material. Fomos criados para odiar às ideias e ao bom intelecto. Isso, por si, já é uma loucura – e o motivo de eu iniciar aos moldes do Elogio da Loucura do Roterdã. Mais louco ainda é amarmos, arbitrariamente, a outras ideias, tão imateriais e efusivas quanto essas, sem o menor exercício do intelecto. Uma dessas ideias: a ecologia, motivo pelo qual a desprezo e não coaduno com seu arguidor.

A ecologia e a complexidade são ótimas constatações para aqueles que, historicamente, provém das ciências estritamente aplicadas e, como disse, tornam-se perplexos quando se defrontam com este fenômeno filosoficamente vulgar: de que a linguagem é arbitrária e, portanto, ao bel prazer do investigador, tudo pode estar conectado e ele tem o poder supremo sobre todas as conexões segundo seus recortes de pesquisa, operando sinonímias ou diferenciações segundo a conveniência e o utilitarismo a si mesmo (como o fizemos com ontologia e metafísica, igualando-as antes, mas diferenciando-as depois para optar por um, segundo atributos secundários e contextuais – pragmáticos).

Que tudo está potencialmente conectado e os objetos de estudo podem ser, virtualmente, quaisquer das partes do todo, ou relações entre determinadas partes, fazendo com que a soma (meramente algébrica) das partes com as relações potenciais (combinatória) resulte um valor maior do que apenas a soma das partes, isso é matematicamente (e, portanto, filosoficamente) quase infantil. Infantil em seu duplo aspecto: o princípio cronológico de tudo (e você o faz bem citando a complexidade ao início de seu texto) e com um potencial enorme pela frente. Também me quedo perplexo ao olhar a uma criança e cogitar tantos adultos que ela pode vir a ser, assim como me faço perplexo também ao olhar ao meu passado e ver essa coisa que me tornei. Inclusive, do meu passado, já me perplexei com a complexidade, uma vez que, como boa parcela do convencional mundo acadêmico brasileiro, minha formação original foi puramente aplicada. Não é de se estranhar que uma grande amiga me o disse certa vez durante uma caminhada pelas praias de Piúma, durante um desses passeios da alma (regados a pensamentos entremeados a dizeres vulgares e o prazer saudável da caminhada): todo grande físico acaba, mais à frente da carreira, se voltando à epistemologia.

Esse ato – do qual você passa a compartilhar e esboçar – de voltar-se à epistemologia é o que lhe dá o atributo que te deram: erudito. Trocado em miúdos, entretanto, a erudição combina muito mais com um intelecto racional do que com palavras difíceis. Por racional: que as coisas do mundo estão dispostas segundo proporções (donde o pensamento matemático é sua base) e, não aleatoriamente, nesse sentido razão e proporção são sinônimos. O erudito, portanto, é moderado e conhece as proporções, extensões e outros atributos quantitativos (ou ao menos semiquantitativos, quando não são bem quantificáveis, mas podem-se comparar em maior, menor, ordená-los segundo critérios vulgares etc.) daquilo que fala. Tua proposta taxonômica de organização dos principais atributos a se mirar para pensar o digital me parece uma ferramenta ótima, que não me arrisco a adentrar diretamente por desconhecer as áreas específicas. Da estrutura, entretanto, o taxonômico e as camadas descrevem muitíssimo bem a proposta: uma ferramenta de categorias (nomes taxativos segundo a convenção que você propõe) que organiza os grupos de critérios/atributos a serem pensados em primeiro lugar (camada mais basilar), em segundo e em terceiro. Numa mesma camada, em termos estruturais, resulta indiferente para o resultado final se uma categoria é pensada antes da outra. Como ferramenta, não será a melhor aplicável à totalidade das coisas – e nisso você também é plenamente claro em seu texto –, mas ela refina o intelecto de quem pensa seu problema.

Chamar a tal sistematização taxonômica de ecológica seria, a meu ver uma presunção burra: a) primeiro, contraditória, pois você reconhece que sua proposta, por melhor que seja, é uma ferramenta e, portanto, finita, contrariamente à noção totalizadora [e indesejável] da ecologia e da complexidade; b) segundo, pois reforçaria esse nome que vem, contemporaneamente, surfando (outra metáfora de seu gosto, agora com o amplificador de uma onda de impulsão e uma prancha) com as urgências ambientais e, aplicado indiscriminadamente às humanidades, dando voz a pesquisadores petrificados perante uma constatação filosoficamente vulgar. É de Descartes o alerta: “estarmos particularmente cautelosos (praecipue caventes) para que nossa razão não cesse de trabalhar, ficando ociosa (ne ratio nostra ferietur)”[¹].

Algumas ferramentas ganham por sua simplicidade e generalidade – como a que você se baseara em sua pesquisa –, outras por seu detalhismo e especificidade – como a que você propõe. Essa é uma proposição horizontalizante. Da simplicidade ao detalhismo, no contexto atual em que nos petrificamos perante a complexidade, em que o academicismo implode em sua própria endogenia, sua proposta ganha em inovação. Mais que ela, a sua pesquisa filosófica apresenta-se muitíssimo à frente de tantas outras por reconhecer tudo isso que traduzo em minhas palavras (digo o mesmo que você, por outras vias). A tomar por critério o número de pessoas que julgariam a sua pesquisa como científica, talvez estivesse em maus lençóis. Eu o considero, entretanto, um elogio: em um mundo acadêmico que se esqueceu a importância da ciência pura e populado de várias pseudociências, àquilo que rotulam “ciência” é, probabilisticamente, mais provável de ser vulgaridade do que um intelecto emendado. Complementarmente, ser julgado ensaísta filósofo (logo, não cientista), probabilisticamente um produtor de grandes obras.

Citam Bauman por aí que as paixões contemporâneas atuais são líquidas e vulgares. Eu o considero o oposto: foi de tanto assorearmos e solidificarmos nossas paixões – pelo livre pensar – que elas se tornaram rasas. É assim com as categorias e rótulos: por ojeriza a eles, optou-se por não se rotular nada, impedindo-nos qualquer comunicação e paralisando-nos, quando para que nossa razão não cessasse de trabalhar deveríamos dançar com nossos vários e tantos – potencialmente todos – os rótulos, num exercício de conectar-se com todos. Eis a grande ironia de nosso século: pregam a ecologia, o todo interrelacionado, mas rejeitam, num ato arbitrário, qualquer conexão. O que nos falta é a falta de incertezas na ciência.

Enfim, falei-lhe vulgarmente e deleitei-me com esses passeios de alma que são os atos de pensar. Imitando apenas a aqueles costumes que não são contrários à minha teleologia, brindei contigo o álcool de sua aprovação enquanto mestre e escrevi-lhe conforme a linguagem desses que identificamos como nossos – tão-queridos – enfants terribles. Se pude extrair-lhe um sorriso, cabresto e acanhado que seja, será o sinal das emendas de nossos intelectos, cuja alegria é sintoma quente e bem quisto.

se alguém não quiser ainda contentar-se com essas razões, que pense então que é honroso ser censurado pela Loucura, e que, tendo escolhido essa Deusa para fazer ela própria seu elogio, fui obrigado a adaptar-me a seu caráter. Mas por que sugerir meios de defesa a você que é tão bom erudito, e em cujas mãos mesmo as causas pouco excelentes tornam-se muito boas? Adeus, sapientíssimo Tonhá. Defenda com zelo esta Loucura que agora lhe pertence. (Erasmo de Rotterdam, com alterações).

Mishêquistão, Brasília-DF, 8 de jun. de 2023.

[1] Citação de Cristiano Novaes de Rezende, na Introdução da tradução, pela Editora Autêntica, da obra de Spinoza (2023): Tractatus de intellectus emendatione.